A crise e os tropeços científicos no Brasil: Alckmin, ‘fosfo’, Suzana Herculano e ministro criacionista

O melhor jeito de encontrar novos tratamentos para doenças, entender as relações humanas de uma comunidade pré-histórica ou decifrar as forças que regem o Universo é por meio da pesquisa científica. Para isso, são necessários alguns ingredientes fundamentais: pessoas com boa formação, interessadas em dedicar-se ao ofício; verba; acreditação e estímulo do poder público e da sociedade.

Os problemas não são de hoje, mas os últimos dias foram notáveis –sofremos golpes em cada uma dessas cláusulas pétreas.

Comecemos pelo dinheiro. Ao dizer que muitos dos estudos apoiados pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) não tinham finalidade prática e que não deveriam ser financiados, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) revelou um pouco mais de como sua cabeça funciona nas questões de ciência e saúde.

A resposta foi dura e veio de todos os lados, inclusive da Fapesp –que faz uma análise estratégica e meritocrática de quais projetos vai apoiar. Chega a ser curioso: é o próprio governador quem escolhe o presidente da fundação. O comentário de bastidor revela a lamentável falta de sintonia do mandatário com a agência de fomento.

O governador também foi um dos primeiros a abraçar a popular causa da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer”, cuja efetividade, ao menos por ora, é meramente especulativa e pouco respalda por experimentos científicos.

Criticar a pesquisa básica, um dos motores do desenvolvimento cultural e social, e apoiar estudos desacreditados e a produção de um remédio incerto não condizem com a formação na área médica e com a longa trajetória política de Alckmin.

A pesquisa científica no Brasil já anda despriorizada, subfinanciada. Com a crise, milhares de mestrandos e doutorandos (que são os que realmente põem a mão na massa) ficaram sem bolsas de estudos da Capes, fundação ligada ao MEC, afetando a formação da próxima geração de pesquisadores do país.

Em São Paulo, o dinheiro destinado pela Fapesp para bolsas de pesquisa está sujeito a um ajuste (para mais ou para menos) de acordo com a receita do Estado –e o panorama não é favorável.

Os professores universitários e pesquisadores também viram os financiamentos para seus estudos minguarem. O dinheiro é essencial para comprar reagentes, equipamentos e custear viagens, por exemplo.

JEITINHO AMERICANO

Até a criatividade do brasileiro tem limites. Depois de ter de lançar mão de uma campanha de crowdfunding para manter seu laboratório funcionando por algum tempo, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel anunciou sua saída da UFRJ para a Universidade Vanderbilt, nos EUA (bom para os irmãos do norte, ruim para a gente).

Além do financiamento parco, ela reclama do engessamento da carreira acadêmica –não é possível negociar salários ou usar dinheiro de pesquisa de uma maneira eficiente (leia aqui entrevista dada à Folha).

Para quem fica nesta terra, o cenário acaba de piorar um pouco mais. O provável governo Temer já está negociando entregar o ministério da Ciência e Tecnologia ao comando do PRB. O assunto veio à tona com força porque o favorito a assumir a pasta, o deputado federal Marcos Pereira, presidente nacional do partido, é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus.

Ele se declara criacionista –o criacionismo nega a evolução das espécies e ignora a maioria do conhecimento biológico obtido no último século. Se existe algo que deixa biologistas (e outros, como geólogos) furiosos –a esmagadora maioria não criacionista– é ver essa “teoria” ganhar espaço na ciência. Imagine como esses pesquisadores se sentem com a verossímil hipótese de um criacionista no comando do ministério, escolhendo projetos prioritários…

Muita gente, de novo, ficou brava. Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência queria alguém mais técnico e lamentou o troca-troca na pasta. Em nota que não citava explicitamente o nome de Pereira, a Sociedade Brasileira de Física declarou: “Nos parece inaceitável a indicação de um ministro com posições ideológicas ortogonais às da ciência moderna.”

Por mais que Pereira possa ser um bom gestor, o talvez futuro presidente Michel Temer já começa dando um passo atrás nas relações com a comunidade científica, já tão abalada e renegada.

Para a Saúde, ele cogita nomes de médicos importantes, de fora da política partidária. Por que não manter esse critério para a Ciência? A proposta até então aventada é a de que seu possível governo seria de coalizão, para botar a casa em ordem.

Concluindo: toda essa fragilidade atravanca o progresso e adia ainda mais o sonho brasileiro de se tornar um país desenvolvido, capaz de brigar em pé de igualdade por descobertas científicas, inclusive novos remédios e tratamentos para as diversas doenças que nos afligem. A cura para nossa ciência, ao que tudo indica, ainda está um tanto distante.

Enquanto o país sofre para achar algum caminho viável, só resta desejar boa sorte para Suzana lá nos EUA. Por favor, não se esqueça de nós.


Leia mais sobre esse mesmo assunto: A crise e os tropeços científicos no Brasil 2: religião, nacionalismo e desenvolvimento

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