A crise e os tropeços científicos no Brasil 2: religião, nacionalismo e desenvolvimento
Uma das sortes que tenho com esse espaço do Cadê a Cura? é a de abrir a discussão de temas importantes.
Em atenção ao meu último post, quando discuti um pouco do imbróglio científico brasileiro, o professor de filosofia (e de filosofia da ciência) Wagner de Campos Sanz, da Universidade Federal de Goiás, escreveu o e-mail abaixo. Volto adiante.
Caro Sr. Gabriel Alves,
De modo geral, podemos dizer que o senhor coloca-se do lado correto no campo da disputa entre aqueles que defenderiam mais verbas para a pesquisa e aqueles que como o governador de São Paulo estariam em contra. Como o governador não se manifestou publicamente, a filtração tem que ser tomada com muito cuidado, pelas razões que exporei abaixo
Adicionalmente, a saraivada disparada pela profa. Suzana Houzel deve ser tomada com cuidado. Ela é apreciada no país, mas tomou a decisão de se afastar do Brasil e dirigir-se aos EUA e certamente ela precisa produzir algum tipo de justificativa perante a comunidade na qual ela atua de forma imediata.
Não acredite que o Brasil é pior país do mundo para fazer pesquisas. Se você olhar para a península ibérica verá dois países que vivem uma crise brutal, muito maior que a nossa, sofrem uma redução muito mais drástica em suas verbas e ainda assim possuem pesquisadores gabaritados. Ninguém simplesmente troca de país para outro pelo fato de que as verbas para pesquisa não são suficientes e isso vale na maior parte dos países do mundo! As trocas como a da profa. Houzel costumam envolver uma grande dose de ambição e motivação estritamente pessoal, incluindo as finanças pessoais. Não queremos com isso dizer que não existam razões objetivas para a troca. Todavia, diferentes atores vêm a situação de modo diferente.
O que é inaceitável na argumentação de Houzel, na sua própria e na do governador é o fato de assumir que uma parcela pequena e não expressiva da comunidade acadêmica poderia decidir o que é e o que não é relevante na pesquisa e, assim, decidir quem recebe e quem não recebe financiamento. Aliás, essa foi uma das características do PSDB na administração federal que criou a excrescência dos chamados centros de excelência. O partido favoreceu vários grupos politicamente próximos a ele que foram tratados como centros de excelência sem ter as condições para isso, ou seja, sem ter o reconhecimento internacional para tanto. E esses centros não estiveram restritos a área biológica.
Porém, o que parece-me mais notável como lacuna no seu texto é o fato de que o problema das verbas vem a público intimamente alinhado com um ambiente político mais e mais influenciado pela religião e sobretudo em uma área muito sensível ao debate metafísico-teológico, as biomédicas. Não só cogita-se um ministro criacionista como o próprio governador é reconhecidamente um cristão ligado a movimentos de direita dentro da igreja, coisa que você não comentou.
Saudações,
Wagner Sanz
Dr. em Filosofia, UFG
Retorno. De fato, eu, Suzana Herculano e o governador Geraldo Alckmin temos (aparentemente) um ponto comum de pensamento: os melhores devem ter mais verba. Para um leigo, existe um jeito melhor de buscar uma cura ou de entender um fenômeno do que apostar as fichas no melhor cientista da área?
A métrica utilizada, contudo, deveria contemplar tanto áreas “estratégicas” quanto a produtividade do pesquisador. Claro que decidir o que é ou não estratégico cabe a um bom gestor, e é essa a parte da equação que provavelmente traria mais erros, ou injustiças, na distribuição do dinheiro.
Dar mais para os melhores não significa que os menos excelentes devam ser limados –o que existe na academia hoje é muita gente acomodada atrás da “isonomia”. Marcelo Leite, em sua coluna desta segunda (9), intitulada “Fracos e Medíocres”, trata muito bem do tema.
Sobre a possível falta de nacionalismo de Suzana, não gosto do julgamento. Mayna Zatz, uma dos melhores pesquisadoras na área de doenças neuromusculares (como a distrofia de Duchenne), resolveu ficar no país, na USP; o geneticista Alysson Muotri é professor da Universidade da Califórnia em San Diego, onde pesquisa, entre outras coisas, as mudanças neuronais do autismo. É possível listar inúmeros exemplos de ótimos cientistas que ficaram ou que foram.
Eu só lamento a nossa capacidade de retenção não ser maior do que a atual. Com a evasão, o país perde a chance de avançar cientificamente mas a cura para uma doença não deixará de ser encontrada por falta de motivação.
CRIACIONISMO
Toma-se como prudente a separação entre ciência e religião. Difícil discordar ao ver absurdos científicos como a “Teoria do Design Inteligente” (nome quase palatável do criacionismo científico).
Em política, estamos sujeitos aos achismos de quem quer que seja –ateu ou bispo. Encontrar os coeficientes (ou pesos) adequados para cada elemento da somatória de considerações de cada ponto de vista está longe de ser uma ciência exata.
A ciência não vai se livrar da influência da religião (como já aconteceu no caso das células-tronco embrionárias) assim como a religião não vai deixar de ser questionada pela ciência (quando se nega a evidência da diversificação das espécies por um mecanismo não divino ou quando se afirma que a Terra tem 10 mil anos de idade).
Não acho impossível que um religioso possa ser um bom gestor científico, mas o tom de enfrentamento de colocar um criacionista no MCTI certamente não foi salutar para a ainda teórica gestão Temer. Se consolidada, a indicação não agregaria valor à pasta e sinalizaria (mais uma vez) o quão desimportante é a ciência para nossos políticos. Atualmente já hipotetiza-se um “desconvite” Marcos Pereira (PRB) para a Ciência no também hipotético governo.
Enfim, o erro de impedir que o povo se beneficie de uma boa ciência no país não muda de tamanho por ter vindo de um cristão da Opus Dei ou de uma revolucionária marxista.
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Se quiserem saber mais sobre a terra de ninguém entre ciência e religião, leiam o blog “Darwin e Deus”, do excelente Reinaldo José Lopes.
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