Trabalho na ‘Nature’ renova chance de Brasil ser protagonista na ciência da zika
Fazia algum tempo que não surgia uma grande novidade na relação entre zika e microcefalia. Se alguém ainda sentia falta de evidência para estabelecer a relação causal entre as duas condições, é a hora de rever os conceitos.
Três trabalhos independentes foram publicados nesta quarta (11), mostrando mais uma vez a capacidade de o vírus da zika agredir o sistema nervoso, impedindo seu desenvolvimento. A peculiaridade é que dessa vez foram usados modelos animais –camundongos.
O mais notável desses artigos é brasileiro e foi publicado na prestigiosa revista “Nature”. Você pode ler aqui a reportagem da Folha a respeito.
Antes disso já havia dados o suficiente para a maioria de médicos e cientistas, além da Organização Mundial da Saúde, considerarem a relação de causalidade estabelecida. Mesmo assim, ainda havia uma nesga de dúvida. O caminho completo da infecção, do sangue ao cérebro do feto –passando pela placenta– ainda não era tão claro, apesar de haver algumas peças soltas desse quebra-cabeça.
Já se sabia que esse arbovírus (vírus transmitido por um vetor artrópode, como os mosquitos aedes) tinha uma característica neurotrópica (preferência ou facilidade de atacar neurônios), mas os artigos científicos dessa leva vão além porque mostram esse efeito em um organismo vivo, complexo, não em uma cultura de células ou organoides (minicérebros), como mostrou o trabalho de Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.
No novo trabalho brasileiro, as fêmeas de camundongo foram infectadas durante a prenhez e seus filhotes nasceram com defeitos importantes, Veja alguns dos resultados abaixo.
É possível ver a diferença no tamanho dos fetos (a) e também de medidas do crânio (b). O trabalho ainda traz indícios de que o vírus pode alterar a expressão gênica das células favorecendo mecanismos de “suicídio” celular ou de autofagia –ambos podem causar a microcefalia.
Vale destacar o esforço do grupo de cientistas da Universidade de Washington, que criou um modelo animal “humanizado”, com um sistema imunológico geneticamente programado para falhar e permitir a infecção. Após a inoculação, houve danos na placenta e no feto –podendo ser letal. O trabalho está na também excelente revista “Cell”.
Um grupo chinês injetou vírus da zika diretamente em fetos de camundongos e constatou a microcefalia após alguns dias. O trabalho está na “Cell Stem Cell”.
No estudo brasileiro, uma das linhagens testadas era “resistente” à infecção por zika (sua prole ficava intacta). É possível supor que alguma fragilidade do sistema imunológico contribua para a infecção tanto nos animais quanto em humanos –o que poderia explicar a alta incidência de microcefalia em algumas regiões, em grupos de pessoas com características étnicas ou comportamentais semelhantes.
Além de solidificar a relação causal entre zika e microcefalia, o desenvolvimento de modelos animais é importante para o teste de novas drogas e vacinas contra o vírus da zika. Já há estudos nessa direção.
A crise do zika, como mostramos na reportagem “Bastidores da zika”, foi uma oportunidade para pesquisadores brasileiros “mostrarem serviço”, atendendo uma comovente demanda do país. Existe o medo, porém, de que esse fôlego inicial acabe –seja por falta de verba ou pessoal.
Nesse sentido, o trabalho do grupo brasileiro, majoritariamente da USP, é um alento. Em meio a essa crise política e econômica, resta torcer para que se afaste o perigo de que o país perca o protagonismo científico na emergência sanitária internacional e possa mostrar que dispõe de grandes cientistas e gestores, capazes de lidar com um problema dessa dimensão.
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