Vamos penar bastante antes de mapear todo o prejuízo causado pela zika em bebês
Em ciência e saúde, a história real é quase sempre mais complicada do que aquela que nos contam. Alguns novos estudos da agora não tão misteriosa relação entre zika e microcefalia foram publicados na última quarta (29).
A grande novidade de um deles, da revista “The Lancet”, é que não dá para confiar na microcefalia (definida pelo perímetro cefálico, ou circunferência da cabeça) como critério para saber quem foi ou não afetado pelo vírus da zika. Os cientistas já vinham especulando a respeito –o buraco causado pelo vírus vai bem mais embaixo e pode ser até “sutil”.
Um dos primeiros indícios de que isso poderia estar acontecendo é o fato de terem sido encontradas lesões oculares em bebês cujas mães haviam sido infectadas por zika. Nessas crianças, o perímetro cefálico não acusava qualquer problema –só exames de imagem do cérebro (e do olho) mostravam alguma alteração.
O novo estudo foi bancado pelo Ministério da Saúde e pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e avaliou os primeiros 1501 investigados para zika. Destes, 899 foram descartados e os 602 restantes, de alguma maneira, teriam o que agora é chamado de “síndrome congênita da zika”.
O critério de classificação usado pelos cientistas (do mais provável caso de infecção para o menos provável) envolve a existência de exames laboratoriais que confirmem o vírus da zika, outros que descartem outras possíveis causas de microcefalia e exames de imagem do encéfalo.
A criação das cinco categorias ajuda a fazer algumas estatísticas. Uma delas mostra a relação entre o sintoma exantema (placas vermelhas ou rash) nas mães e a probabilidade de síndrome congênita do zika.
Como se vê, apesar de haver uma correlação entre a vermelhidão da pele e o nível de certeza diagnóstica, não dá para confiar muito nessa medida para saber se alguém tem zika. A chance de uma grávida com exantema ter um filho com síndrome congênita da zika é de apenas 71,1%, de acordo com os cientistas. Um grande número de mulheres que não tiveram vermelhidão na pele ficariam desassistidas se esse critério fosse eliminatório.
Abaixo coloquei o gráfico da mortalidade associada à cada nível de certeza diagnóstica. Também observamos um aumento conforme o grau de certeza sobe. O decréscimo justamente no ponto dos casos definitivos não quer dizer muita coisa –existe 95% de chance de o número real estar entre 4,4 a cada 1.000 e 86,6 a cada 1.000 (ou seja, na realidade não se sabe onde esse valor está. Isso porque o número de casos definitivamente confirmados é pequeno, e a margem de erro fica grande).
O mais interessante para o leigo, como eu, que não está imerso em maternidades medindo cabeças de recém-nascidos, é que o alardeado critério do tamanho da cabeça para microcefalia também não vale grande coisa.
O gráfico abaixo mostra que mesmo nos casos mais prováveis de síndrome congênita da zika, há uma parcela não desprezível que não seria selecionada pelo critério cabeça pequena mesmo em casos prováveis da síndrome congênita da zika. Vamos voltar em breve, aqui no Cadê a Cura?, a tratar desse assunto.
Em um comentário ao estudo, Jörg Heukelbach da Universidade Federal do Ceará e Guilherme Werneck, da UERJ, escreveram que seria possível incorporar sinais e sintomas neurológicos aos já conhecidos critérios de exantema da mãe e de perímetro cefálico, mas que a melhor aposta seria desenvolver um teste sorológico (já há algumas tentativas em curso) que pudesse ser incorporado na rotina pré-natal para detectar a zika e, quem sabe, permitir tratamento precoce (quem sabe com antibióticos, possibilidade mostrada em uma reportagem da Folha).
“Enquanto o surto é um exemplo de quão rápido as evidências científicas podem (e devem) mudar a visão sobre uma doença, espera-se que as autoridades e a comunidade científica tenham de enfrentar por muitos anos as consequências da epidemia de zika, no Brasil e em qualquer outra parte do mundo”, concluem.
RESUMO DIFÍCIL
Os achados do artigo estão resumidos em um diagrama de Venn. Para quem não é muito fã da representação, basicamente o que ela quer dizer é que não dá para confiar em nenhum critério para bater o martelo quanto aos casos de infecção por zika. Há, inclusive, muitos casos que podem ter sérios prejuízos sem qualquer sintoma materno ou achado em exames de imagem neurológico –e talvez nem rastro de vírus tenha sobrado. Não há alternativa a não ser esperar para saber no que vai dar.
Na melhor das hipóteses, qualquer nascido durante esse surto, principalmente entre o final de 2015 e o começo de 2016, especialmente no Nordeste, estará sob suspeita de ter seu desenvolvimento neurológico (e de outras partes do organismo) afetado pelo vírus da zika. Enquanto isso, haverá inúmeros casos de pessoas desassistidas e bebês com casos não diagnosticados da recém-batizada síndrome congênita da zika, a qual a ciência ainda começa a compreender.
A única certeza que resta é que ainda vamos apanhar bastante da zika antes de achar um jeito de lidar corretamente com ela.
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