Uma pessoa que já teve dengue tem chance de ter uma infecção mais grave por zika?

Médicos e cientistas estavam com uma pulga atrás da orelha: será que infecções anteriores pelo vírus da dengue poderiam, de alguma maneira, agravar o efeito do vírus da zika no organismo? A resposta é não.

Um ano atrás, em junho e julho, dois estudos, um na revista “Nature Immunology” e um na revista “Science”, apontavam uma possível interação perigosa entre as infecções. E as vacinas contra a dengue (aquela então recém-lançada pela francesa Sanofi e a que vem sendo desenvolvida pela parceria NIH-Butantan-USP) poderiam piorar esse quadro.

Ao proteger o organismo contra a dengue e gerar anticorpos, essas vacinas estariam, no fim das contas, dando armas (esses mesmos anticorpos, veja só) para outro perigoso inimigo: o vírus da zika.

Imunologistas já haviam descrito um fenômeno batizado de ADE (antibody-dependent enhancement, algo como potencialização dependente de anticorpos). Os anticorpos, em vez de neutralizar e promover a aniquilação de um vírus, acabam se ligando a ele de uma forma “frouxa”, permitindo que ele se reproduza sem dificuldades no interior de células do organismo.

Se fosse verdadeira, essa seria uma possível explicação para as graves consequências que observamos no Brasil, como o surto de microcefalia e de outras más-formações associados à zika.

Protegido, os vírus passariam incólumes pelo sistema imunológico e poderiam infectar mais rapidamente as células do organismo, usurpando as estruturas intracelulares com a finalidade de se replicar.

Vale notar que a ADE é uma das possíveis explicações para as infecções recorrentes pelo vírus da dengue terem maior potencial para complicações: como existem quatro subtipos do vírus, é possível ter dengue quatro vezes em uma escala crescente de gravidade.

Com relação à zika, porém, segundo dois novos estudos científicos, não há indícios de que a ADE sequer aconteça, tampouco seja culpada pelos casos de microcefalia no país e outras consequências graves do surto da doença, como a síndrome paralisante de Guillain-Barré.

Uma dessas pesquisas, conduzida por pesquisadores dos EUA, foi feita em macacos. Eles infectaram os animais com vírus da dengue algum tempo atrás e agora resolveram infectá-los com o vírus da zika.

Resultado: a dinâmica do vírus da zika no sangue dos macacos, independentemente se tiveram dengue ou não, é a mesma. Veja a figura abaixo:

(Crédito: Reprodução/”Nature Communications”)

O gráfico mostra o aumento da quantidade de genoma viral (RNA) no soro ao longo do tempo; após sete dias, o valor se estabiliza. Ambos os grupos (previamente infectados com dengue em laranja e nunca expostos aos arbovírus em preto) atingem a viremia máxima de zika no segundo dia de infecção. A linha tracejada indica o limite de detecção do método empregado. O estudo está na revista “Nature Communications”.

EM GENTE

Outra pesquisa que aponta na mesma direção, feita com seres humanos, é uma que foi liderada por Maurício Lacerda Nogueira, da Faculdade de Medicina de Rio Preto. No estudo, 65 pacientes foram separados em dois grupos: aqueles que já tinham tido dengue ou não.

Os pesquisadores mediram (por meio da quantificação do RNA viral) a quantidade de vírus em cada um dos grupos, quando as pessoas apresentaram uma nova infecção, fosse ela dengue ou zika.

A conclusão, como mostra a figura abaixo, não difere daquela do estudo americano.

(Crédito: Reprodução/”Clinical Infectious Diseases”)

No gráfico, a comparação foi feita entre grupos que tiveram dengue (direita) com os que não tiveram (esquerda) e que estavam sofrendo, por um período de até cinco dias, com uma nova infecção pelo vírus da zika (ZIKV) –ainda na fase aguda. Não houve diferença de carga viral entre os grupos.

Outro método de verificar se a ADE está acontecendo é avaliando a produção de citocinas, uma família de moléculas importantes para  sinalização de eventos do organismo como a inflamação, estresse oxidativo ou proliferação celular. Os cientistas também não viram diferenças nesse sentido na direção dengue-zika.

Já para a dengue, pode ser que o ADE tenha uma participação, afirma Nogueira. “Mas não há argumentos irrefutáveis para nenhum dos lados. Temos que lembrar que a ADE é uma teoria que explica muita coisa, mas não explica tudo. É algo fácil de ver in vitro e até em alguns modelos animais, mas ninguém nunca demonstrou que a ADE ocorra em seres humanos.”

Nogueira conta que a ideia de estudar o tema nasceu após a publicação de artigos mostrando, in vitro e em camundongos, que o ADE poderia, eventualmente, ser um complicador para o lançamento e comercialização de vacinas contra a dengue.

“Conversei com o Jorge Kalil [professor da USP, também autor da pesquisa] e, como São José do Rio Preto sempre teve bastante dengue e estavam surgindo casos de zika, seria o melhor lugar para realizar um estudo para saber se o fenômeno ocorria.”

Um ano depois e com o estudo publicado no periódico “Clinical Infectious Diseases”, Nogueira conclui que, pelo menos para a infecção de zika após a de dengue que “ou o fenômeno da ADE não existe ou ele é tão raro que, no fim das contas, é irrelevante”.

A pesquisa de Nogueira e colaboradores foi financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).


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