Por que a zika afetou mais o Nordeste? Uma toxina pode ser a explicação

Uma das maiores questões que o surto de zika deixou foi esta: por que o Nordeste teve tantos bebês com microcefalia e outras complicações neurológicas? Um levantamento mostra que 88,4% dos casos graves estudados são de lá enquanto somente 8,7% são do Sudeste. Como explicar a discrepância, se a circulação do vírus foi intensa em ambas as regiões?

Cientistas do Rio de Janeiro (Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, UFRJ, IOC/Fiocruz) e de Pernambuco (Universidade Federal Rural de Pernambuco) encontraram uma possível resposta: uma toxina.

Trata-se da saxitocina (STX), molécula produzida pela Raphidiopsis raciborskii, uma cianobactéria (ou alga-azul) bastante comum na América do Sul. A STX tem capacidade de se ligar às células nervosas e causar um efeito paralisante que pode ser letal mesmo em pequenas quantidades.

O Nordeste é a região onde há maior ocorrência de amostras de água ricas em cianobactérias. A hipótese dos cientistas é que, de alguma maneira, a STX poderia facilitar o surgimento de casos graves de microcefalia. Por azar, no do início do surto de zika, em 2015, o NE passava por uma grande seca, uma das piores da história. É possível que parte da população tenha recorrido a estoques de água especialmente contaminados.

O limite de segurança adotado pelo Ministério da Saúde para a presença da STX na água é de 3 microgramas  (0,000003 grama) por litro de água, informam os pesquisadores, mas concentração da toxina raramente chega a tanto nos reservatórios do semiárido. Mesmo depois de ferver e filtrar, é possível que a molécula permaneça inteira e cause efeitos deletérios no organismo.

Ocorrência de cianobactérias no Brasil entre 2014 e 2018; Nordeste concentra amostras com quantidade elevada de micro-organismos (Crédito: Reprodução/Pedrosa CSG e colaboradores)

O primeiro experimento dos cientistas envolveu o uso de minicérebros, organoides construídos em laboratório que permitem estudar o comportamento do tecido nervoso em resposta a mutações genéticas, infecções e tratamentos.

Após a exposição ou não à STX, minicérebros foram ou não infectados pelo vírus da zika. O resultado: o fato de ter sido exposto à toxina aumentou em 2,5 vezes a morte de células pelo vírus da zika. Sozinha, a STX não foi especialmente danosa aos miniórgãos.

O próximo passo envolveu testes em animais. Os cientistas testaram, em camundongos fêmeas, uma ingestão de toxina em uma concentração de 15 nanogramas por litro –menos de um centésimo do limite estabelecido para humanos–, diretamente diluída na água dos bichos, ao longo de uma semana.

Depois disso, as fêmeas acasalaram e foram infectadas com o vírus da zika, mimetizando o que poderia ter ocorrido com mulheres no Nordeste.  Os filhotes dessas fêmeas apresentaram uma redução significativa do córtex (camada mais externa do cérebro) e, neles, a morte de células-tronco também se acentuou.

A conclusão dos cientistas é que é possível explicar, ao menos em parte, o tamanho da crise de zika no Nordeste brasileiro.

“A sinergia entre a cianobactéria e o vírus da zika faz o alerta de que a exposição à STX deveria também ser considerada uma preocupação de saúde pública durante os surtos de arboviroses. É importante esclarecer que a microcefalia e outras anomalias congênitas ligadas à zika são multifatoriais. Outros elementos, portanto, podem ter contribuído para o padrão incomum de distribuição da síndrome congênita da zika no Brasil”, escrevem os autores.

 

Figura mostra efeito dos tratamentos com STX e vírus da zika no cérebro de camundongos; há especial redução do córtex cerebral em especial nos filhotes de mães tratadas com a toxina e depois infectados com o vírus (Crédito: Reprodução/Pedrosa CSG e colaboradores)

“Desnutrição, genética, coinfecções ou infecções anteriores muito provavelmente também contribuíram. Nenhum trabalho científico é definitivo, justamente porque sempre surgem novas questões a partir dele, e poderá sempre ser refutado com novos dados científicos”, explica um dos autores do trabalho, o neurocientista Stevens Rehen, do Instituto D’Or e da UFRJ.

“O trabalho foi todo realizado no Brasil, apesar dos poucos recursos disponíveis”, diz Rehen. O estudo contou com apoio da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), BNDES, Finep e Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (Ministério da Saúde).

Devido à relevância para a saúde pública, a pesquisa foi publicada primeiro na forma de pré-print, ou seja, foi disponibilizada ao público antes mesmo de ser revisada por cientistas independentes, não ligados ao estudo.


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