Cadê a Cura? https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br Sobre doenças e suas complicações e o que falta para entendê-las e curá-las Thu, 19 Mar 2020 00:39:51 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Por que a zika afetou mais o Nordeste? Uma toxina pode ser a explicação https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2019/09/03/por-que-a-zika-afetou-mais-o-nordeste-uma-toxina-pode-ser-a-explicacao/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2019/09/03/por-que-a-zika-afetou-mais-o-nordeste-uma-toxina-pode-ser-a-explicacao/#respond Tue, 03 Sep 2019 11:04:08 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Screenshot-2019-09-03-at-02.41.47-320x215.png https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=1134 Uma das maiores questões que o surto de zika deixou foi esta: por que o Nordeste teve tantos bebês com microcefalia e outras complicações neurológicas? Um levantamento mostra que 88,4% dos casos graves estudados são de lá enquanto somente 8,7% são do Sudeste. Como explicar a discrepância, se a circulação do vírus foi intensa em ambas as regiões?

Cientistas do Rio de Janeiro (Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, UFRJ, IOC/Fiocruz) e de Pernambuco (Universidade Federal Rural de Pernambuco) encontraram uma possível resposta: uma toxina.

Trata-se da saxitocina (STX), molécula produzida pela Raphidiopsis raciborskii, uma cianobactéria (ou alga-azul) bastante comum na América do Sul. A STX tem capacidade de se ligar às células nervosas e causar um efeito paralisante que pode ser letal mesmo em pequenas quantidades.

O Nordeste é a região onde há maior ocorrência de amostras de água ricas em cianobactérias. A hipótese dos cientistas é que, de alguma maneira, a STX poderia facilitar o surgimento de casos graves de microcefalia. Por azar, no do início do surto de zika, em 2015, o NE passava por uma grande seca, uma das piores da história. É possível que parte da população tenha recorrido a estoques de água especialmente contaminados.

O limite de segurança adotado pelo Ministério da Saúde para a presença da STX na água é de 3 microgramas  (0,000003 grama) por litro de água, informam os pesquisadores, mas concentração da toxina raramente chega a tanto nos reservatórios do semiárido. Mesmo depois de ferver e filtrar, é possível que a molécula permaneça inteira e cause efeitos deletérios no organismo.

Ocorrência de cianobactérias no Brasil entre 2014 e 2018; Nordeste concentra amostras com quantidade elevada de micro-organismos (Crédito: Reprodução/Pedrosa CSG e colaboradores)

O primeiro experimento dos cientistas envolveu o uso de minicérebros, organoides construídos em laboratório que permitem estudar o comportamento do tecido nervoso em resposta a mutações genéticas, infecções e tratamentos.

Após a exposição ou não à STX, minicérebros foram ou não infectados pelo vírus da zika. O resultado: o fato de ter sido exposto à toxina aumentou em 2,5 vezes a morte de células pelo vírus da zika. Sozinha, a STX não foi especialmente danosa aos miniórgãos.

O próximo passo envolveu testes em animais. Os cientistas testaram, em camundongos fêmeas, uma ingestão de toxina em uma concentração de 15 nanogramas por litro –menos de um centésimo do limite estabelecido para humanos–, diretamente diluída na água dos bichos, ao longo de uma semana.

Depois disso, as fêmeas acasalaram e foram infectadas com o vírus da zika, mimetizando o que poderia ter ocorrido com mulheres no Nordeste.  Os filhotes dessas fêmeas apresentaram uma redução significativa do córtex (camada mais externa do cérebro) e, neles, a morte de células-tronco também se acentuou.

A conclusão dos cientistas é que é possível explicar, ao menos em parte, o tamanho da crise de zika no Nordeste brasileiro.

“A sinergia entre a cianobactéria e o vírus da zika faz o alerta de que a exposição à STX deveria também ser considerada uma preocupação de saúde pública durante os surtos de arboviroses. É importante esclarecer que a microcefalia e outras anomalias congênitas ligadas à zika são multifatoriais. Outros elementos, portanto, podem ter contribuído para o padrão incomum de distribuição da síndrome congênita da zika no Brasil”, escrevem os autores.

 

Figura mostra efeito dos tratamentos com STX e vírus da zika no cérebro de camundongos; há especial redução do córtex cerebral em especial nos filhotes de mães tratadas com a toxina e depois infectados com o vírus (Crédito: Reprodução/Pedrosa CSG e colaboradores)

“Desnutrição, genética, coinfecções ou infecções anteriores muito provavelmente também contribuíram. Nenhum trabalho científico é definitivo, justamente porque sempre surgem novas questões a partir dele, e poderá sempre ser refutado com novos dados científicos”, explica um dos autores do trabalho, o neurocientista Stevens Rehen, do Instituto D’Or e da UFRJ.

“O trabalho foi todo realizado no Brasil, apesar dos poucos recursos disponíveis”, diz Rehen. O estudo contou com apoio da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), BNDES, Finep e Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (Ministério da Saúde).

Devido à relevância para a saúde pública, a pesquisa foi publicada primeiro na forma de pré-print, ou seja, foi disponibilizada ao público antes mesmo de ser revisada por cientistas independentes, não ligados ao estudo.


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Zika pode prejudicar cérebro muito tempo depois da infecção, mostra estudo em roedores https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/06/07/zika-adulto/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/06/07/zika-adulto/#respond Thu, 07 Jun 2018 03:06:46 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/zika-virus-estrutura-320x213.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=948 Dois trabalhos recentemente publicados mostram que o complexo panorama relacionado à zika pode ser ainda mais grave: a infecção pode ser devastadora também se acontecer após o nascimento e não somente no desenvolvimento intrauterino, como já se pensou. Além disso, os danos podem se estender até a vida adulta. Ambas as publicações estão no periódico especializado Science Translational Medicine.

O trabalho de publicação mais recente saiu nesta quarta-feira (6) e é fruto do esforço de uma equipe de cientistas da UFRJ, da Unifesp e do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, no Rio.

Foram usados camundongos para mostrar que a infecção pelo vírus da zika poucos dias após o nascimento reduz permanentemente a força muscular dos animais, provoca o surgimento de crises epiléticas no curto prazo e aumenta a susceptibilidade a elas no longo prazo. 

A memória e a sociabilidade dos bichos também são prejudicadas. “Sabemos que algumas infecções neonatais podem estar associadas a doenças que surgem muitos anos mais tarde, como esquizofrenia e autismo”, diz a neurocientista Julia Clarke, da UFRJ, uma das coordenadoras do estudo.

Ela conta que a principal motivação era entender o que se passa com as 90% de crianças infectadas com zika que nascem sem alterações grosseiras, como a redução do tamanho da cabeça ou más-formações nos membros.

Essas complicações mais graves são mais comuns em infecções que acontecem no início da gestação, mas o que Clarke e colegas mostram é que elas podem ser relevantes mesmo quando acontecem no final do período (quando o desenvolvimento cerebral humano é comparável ao momento da infecção dos camundongos no estudo).

Uma mortalidade de 40% afligiu os grupos de camundongos com zika; os sobreviventes tinham menor peso corporal e tamanho do cérebro reduzido.

Cérebros de camundongos de estudo da UFRJ. "Mock" são os de animais controles, os marcados com "ZIKV" pertenciam a animais infectados (Reprodução/Science Translational Medicine)
Cérebros de camundongos de estudo da UFRJ. “Mock” são os de animais controles, os marcados com “ZIKV” pertenciam a animais infectados (Reprodução/Science Translational Medicine)

Cem dias depois da infecção, quando os animais já eram adultos, a quantidade de material genético do vírus permanecia elevada no cérebro, denunciando a atividade do patógeno.

A explicação para esse prejuízo neurológico seria uma permanente inflamação provocada pela replicação viral, algo que o organismo do roedor, assim como aparentemente acontece com o humano, tem dificuldade em solucionar.

Para testar a hipótese, os cientistas deram aos camundongos uma droga capaz de bloquear o TNF-alfa, molécula que participa de maneira importante do processo inflamatório.

“Agora que se sabe que a raiz dos danos neurológicos é a neuroinflamação causada pela intensa replicação do vírus no início da infecção, é possível buscar quem seriam os agentes responsáveis no organismo e atacá-los farmacologicamente”, diz a virologista da UFRJ Andrea Da Poian,  também coordenadora do estudo.

A droga escolhida para tratar os bichos, infliximabe, já é usada para tratar outras doenças inflamatórias, como a doença de Chron, artrite reumatoide e psoríase. O fato de ela já ser aprovada pela Anvisa facilitaria a eventual nova indicação, pulando etapas de estudos, já que aspectos de segurança e toxicidade são bem conhecidos.

Os animais tratados tiveram menor chance de desenvolver as crises epiléticas, mas mantiveram os sintomas motores e comportamentais. Os cientistas propõem que é possível que um tratamento baseado nesse raciocínio possa ajudar a atenuar os efeitos de longo prazo da infecção, mas ainda há muito que se avançar na questão.

“É difícil prever o que aqueles infectados ainda bebês podem desenvolver na fase adulta, mas é importante ter em mente que o que aconteceu ainda no útero pode, sim, ter consequências tardias”, diz Clarke.

“Está claro que um simples monitoramento da prevalência de microcefalia congênita ao nascer é uma medida insuficiente dos males trazidos pela neuropatologia causada pelo vírus da zika em crianças e adolescentes”, escrevem os autores na conclusão do estudo.

Além de Da Poian e Clarke, coordenaram o trabalho Iranaia Assunção-Miranda e Claudia P. Figueiredo, todas da UFRJ.

MACACOS

Um outro artigo recente, de pesquisadores da Universidade Emory e de outros centros de pesquisas nos EUA, mostrou, com experimentos em macacos resos (Macaca mulatta), que o vírus da zika é capaz, também em primatas, de provocar prejuízo no desenvolvimento cerebral.

Por meio de estudos histológicos (com fatias finas do órgão) e de ressonância magnética (que permite visualizar a estrutura), os cientistas observaram que o vírus da zika ataca especialmente o cérebro e a medula espinal –essa preferência recebe o nome de neurotropismo.

O patógeno reduz a quantidade de massa cinzenta no cérebro e altera a conectividade entre neurônios, prejudicando o funcionamento do órgão.

Os cientistas alertam que não há como fazer um paralelo entre o que se passa com os macacos e o que aconteceria com crianças e adolescentes humanos, mas que a tendência é que o desenvolvimento neurológico seja atrasado ou interrompido com a infecção, algo que deve demandar atenção dos serviços de saúde.


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Estudo caso-controle confirma relação de causa e efeito entre zika e microcefalia https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/09/15/estudo-caso-controle-confirma-relacao-de-causa-e-efeito-entre-zika-e-microcefalia/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/09/15/estudo-caso-controle-confirma-relacao-de-causa-e-efeito-entre-zika-e-microcefalia/#respond Thu, 15 Sep 2016 22:46:53 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2016/09/14345517822_4c8271d94e_k-180x116.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=408 Alguns ainda duvidam que o atual surto de microcefalia seja causado pelo vírus da zika. Um estudo publicado na noite desta quinta (15) pela revista científica “The Lancet” talvez sossegue um pouco esses corações aflitos.

Trata-se de um estudo controlado, o primeiro do tipo feito desde o começo do surto. Para cada caso de microcefalia, os cientistas recrutaram dois controles (o plano é ter um grupo de casos com 200 bebês e de controles com 400; por ora são apresentados os resultados com 32 casos e 62 controles). Conduziram o estudo diversos pesquisadores, inclusive filiados ao Ministério da Saúde e à Organização Pan-Americana da Saúde (da OMS).

Os bebês nasceram na região metropolitana de Recife e os todos têm as mesmas características sociodemográficas. Em outras palavras, os cientistas não estão analisando outras variáveis a não ser a presença ou ausência do vírus e seu efeito.

A grande vantagem é que o estudo é prospectivo, ou seja, caminha para frente, analisando os novos casos a partir de uma certa data (janeiro, no caso) em diante. Isso faz com que os vieses de se estudar o passado (como amostras ou observações viciadas) sejam reduzidos.

O resultado: se um bebê nasceu com microcefalia a chance dele ter tido zika é 55,5 vezes maior do que a de um bebê sem microcefalia (mas também há a chance de haver prejuízo neurológico que não resulta em microcefalia, vale lembrar).

Os pesquisadores até propõem que o grupo conhecido como TORCH, conjunto infecções que podem causar más-formações —toxplasmose, outras (sífilis, varicela-zoster, parvovírus B19), rubéola, citomegalovírus (CMV) e herpes– seja rebatizado e ganhe um Z, tornando-se TORCHZ. A ideia não é ruim se considerarmos a indiscutível relevância global atual da zika.

Para a médica especialista em saúde coletiva da UFPE Thália Barreto de Araújo, uma das autoras do estudo, ainda faltava um estudo que não fosse apenas relatos ou de descrições de casos, para medir a força dessa associação. Ela afirma que o fato de os exames de sangue terem sido feitos logo após o nascimento excluem a possibilidade de infecção posterior, o que aumenta a confiabilidade dos achados.

Com relação a outras possíveis variáveis (ou cofatores) que expliquem a “clusterização” (ou zonas) de microcefalia, como a falta de cobertura vacinal para febre amarela ou a alta prevalência de anticorpos para a dengue nessas pessoas, a médica diz que “certamente tem a ver com condições de vida”, mas que esse não foi o escopo do estudo.

“Geralmente os casos de microcefalia aparecem em hospitais públicos, onde vão pessoas com baixo poder aquisitivo. É algo que a gente ainda vai entender…”, diz Thália.

“Se você pensar que o vírus zika é transmitido pelo vetor aedes, que se reproduz em água limpa,  e que há uma grande população continuamente excluída do abastecimento de água (onde a água só chega a cada dois ou três dias), o fato de as pessoas construírem reservatórios para essa água faz com que elas estejam muito mais expostas a criadouros.”


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A estranha história do vírus bovino que, até agora, não explicou microcefalia nenhuma https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/07/08/a-estranha-historia-do-virus-bovino-que-ate-agora-nao-explicou-microcefalia-nenhuma/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/07/08/a-estranha-historia-do-virus-bovino-que-ate-agora-nao-explicou-microcefalia-nenhuma/#respond Fri, 08 Jul 2016 20:58:24 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2016/07/sorofetal-180x120.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=246 Em algumas cidades do Nordeste, o índice de microcefalia é notório, muito maior que em outros lugares onde também há mosquitos aedes e vírus da zika circulantes.

A vontade de muitos pesquisadores é explicar essa situação. Será que em alguns locais a microcefalia é mais grave que em outros? Por que há mais casos no Nordeste do que no Sudeste, por exemplo, sendo que nas bandas de cá também há mosquitos e vírus aos montes?

Hoje ninguém discute que o vírus da zika causa microcefalia: já há evidência acumulada equivalente há décadas de pesquisas anteriores no mesmo tema. No entanto, ainda há uma grande lacuna: explicar essa discrepância geográfica em relação às consequências da infecção. Vale lembrar que os danos da zika podem ser muito mais sutis do que a alteração da circunferência da cabeça e do tamanho do cérebro.

As hipóteses são as mais variadas. Nutrição inadequada, background genético e coinfecção viral são algumas delas. Nesta última se ancora a recente polêmica a respeito de que um vírus bovino (VDVB –vírus da diarreia viral bovina) poderia agravar os efeitos da zika.

Os cientistas, segundo informações que chegaram à imprensa, teriam achado vestígios do VDVB em tecidos de fetos e recém-nascidos com zika que morreram.

O problema, como mostrado em reportagem minha publicada na última quarta na Folha, é que existe uma grande chance de esses achados se deverem a um produto muito usado em laboratório, o soro fetal bovino.

Resumindo a ópera, os cientistas teriam, primeiro, que descartar qualquer chance de contaminação laboratorial das amostras antes de dizer que havia chance de infecção pelo vírus bovino.

Não parece ser o caso, porém. Se fosse real, seria um senhor achado científico –nunca antes foi detectada uma infecção humana, conta o virologista especializado em VDVB da UFRGS Paulo Roehe.

Como hipótese e resultado vazaram (concomitantemente a uma reunião sobre o tema entre pesquisadores e representantes do governo), era esperado que o alarmismo, como sempre acontece, ocupasse o espaço da prudência.

Resta-nos torcer para que os cientistas, jornalistas e população não caiam nas ciladas das explicações fáceis e que o governo mais ajude do que atrapalhe nesse processo de descoberta.


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Vamos penar bastante antes de mapear todo o prejuízo causado pela zika em bebês https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/07/01/vamos-penar-bastante-antes-de-mapear-todo-o-prejuizo-causado-pela-zika-em-bebes/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/07/01/vamos-penar-bastante-antes-de-mapear-todo-o-prejuizo-causado-pela-zika-em-bebes/#respond Fri, 01 Jul 2016 09:33:19 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2016/06/ZIKA-AVENER2-180x120.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=187 Em ciência e saúde, a história real é quase sempre mais complicada do que aquela que nos contam. Alguns novos estudos da agora não tão misteriosa relação entre zika e microcefalia foram publicados na última quarta (29).

A grande novidade de um deles, da revista “The Lancet”, é que não dá para confiar na microcefalia (definida pelo perímetro cefálico, ou circunferência da cabeça) como critério para saber quem foi ou não afetado pelo vírus da zika. Os cientistas já vinham especulando a respeito –o buraco causado pelo vírus vai bem mais embaixo e pode ser até “sutil”.

Um dos primeiros indícios de que isso poderia estar acontecendo é o fato de terem sido encontradas  lesões oculares em bebês cujas mães haviam sido infectadas por zika. Nessas crianças, o perímetro cefálico não acusava qualquer problema –só exames de imagem do cérebro (e do olho) mostravam alguma alteração.

O novo estudo foi bancado pelo Ministério da Saúde e pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e avaliou os primeiros 1501 investigados para zika. Destes, 899 foram descartados e os 602 restantes, de alguma maneira, teriam o que agora é chamado de “síndrome congênita da zika”.

O critério de classificação usado pelos cientistas (do mais provável caso de infecção para o menos provável) envolve a existência de exames laboratoriais que confirmem o vírus da zika, outros que descartem outras possíveis causas de microcefalia e exames de imagem do encéfalo.

A criação das cinco categorias ajuda a fazer algumas estatísticas. Uma delas mostra a relação entre o sintoma exantema (placas vermelhas ou rash) nas mães e a probabilidade de síndrome congênita do zika.

Como se vê, apesar de haver uma correlação entre a vermelhidão da pele e o nível de certeza diagnóstica, não dá para confiar muito nessa medida para saber se alguém tem zika. A chance de uma grávida com exantema ter um filho com síndrome congênita da zika é de apenas 71,1%, de acordo com os cientistas. Um grande número de mulheres que não tiveram vermelhidão na pele ficariam desassistidas se esse critério fosse eliminatório.

Abaixo coloquei o gráfico da mortalidade associada à cada nível de certeza diagnóstica. Também observamos um aumento conforme o grau de certeza sobe. O decréscimo justamente no ponto dos casos definitivos não quer dizer muita coisa –existe 95% de chance de o número real estar entre 4,4 a cada 1.000 e 86,6 a cada 1.000 (ou seja, na realidade não se sabe onde esse valor está. Isso porque o número de casos definitivamente confirmados é pequeno, e a margem de erro fica grande).

O mais interessante para o leigo, como eu, que não está imerso em maternidades medindo cabeças de recém-nascidos, é que o alardeado critério do tamanho da cabeça para microcefalia também não vale grande coisa.

O gráfico abaixo mostra que mesmo nos casos mais prováveis de síndrome congênita da zika, há uma parcela não desprezível que não seria selecionada pelo critério cabeça pequena mesmo em casos prováveis da síndrome congênita da zika. Vamos voltar em breve, aqui no Cadê a Cura?, a tratar desse assunto.

Em um comentário ao estudo, Jörg Heukelbach da Universidade Federal do Ceará e Guilherme Werneck, da UERJ, escreveram que seria possível incorporar sinais e sintomas neurológicos aos já conhecidos critérios de exantema da mãe e de perímetro cefálico, mas que a melhor aposta seria desenvolver um teste sorológico (já há algumas tentativas em curso) que pudesse ser incorporado na rotina pré-natal para detectar a zika e, quem sabe, permitir tratamento precoce (quem sabe com antibióticos, possibilidade mostrada em uma reportagem da Folha).

Diagrama de Venn que resume os achados
Diagrama de Venn que resume os achados (Reprodução/’The Lancet’)

“Enquanto o surto é um exemplo de quão rápido as evidências científicas podem (e devem) mudar a visão sobre uma doença, espera-se que as autoridades e a comunidade científica tenham de enfrentar por muitos anos as consequências da epidemia de zika, no Brasil e em qualquer outra parte do mundo”, concluem.

RESUMO DIFÍCIL

Os achados do artigo estão resumidos em um diagrama de Venn. Para quem não é muito fã da representação, basicamente o que ela quer dizer é que não dá para confiar em nenhum critério para bater o martelo quanto aos casos de infecção por zika. Há, inclusive, muitos casos que podem ter sérios prejuízos sem qualquer sintoma materno ou achado em exames de imagem neurológico –e talvez nem rastro de vírus tenha sobrado. Não há alternativa a não ser esperar para saber no que vai dar.

Na melhor das hipóteses, qualquer nascido durante esse surto, principalmente entre o final de 2015 e o começo de 2016, especialmente no Nordeste, estará sob suspeita de ter seu desenvolvimento neurológico (e de outras partes do organismo) afetado pelo vírus da zika. Enquanto isso, haverá inúmeros casos de pessoas desassistidas e bebês com casos não diagnosticados da recém-batizada síndrome congênita da zika, a qual a ciência ainda começa a compreender.

A única certeza que resta é que ainda vamos apanhar bastante da zika antes de achar um jeito de lidar corretamente com ela.


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Trabalho na ‘Nature’ renova chance de Brasil ser protagonista na ciência da zika https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/05/12/trabalho-na-nature-renova-chance-de-brasil-ser-protagonista-na-ciencia-da-zika/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2016/05/12/trabalho-na-nature-renova-chance-de-brasil-ser-protagonista-na-ciencia-da-zika/#respond Thu, 12 May 2016 13:38:04 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2016/05/591504-970x600-1-180x111.jpeg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=84 Fazia algum tempo que não surgia uma grande novidade na relação entre zika e microcefalia. Se alguém ainda sentia falta de evidência para estabelecer a relação causal entre as duas condições, é a hora de rever os conceitos.

Três trabalhos independentes foram publicados nesta quarta (11), mostrando mais uma vez a capacidade de o vírus da zika agredir o sistema nervoso, impedindo seu desenvolvimento. A peculiaridade é que dessa vez foram usados modelos animais –camundongos.

O mais notável desses artigos é brasileiro e foi publicado na prestigiosa revista “Nature”. Você pode ler aqui a reportagem da Folha a respeito.

Antes disso já havia dados o suficiente para a maioria de médicos e cientistas, além da Organização Mundial da Saúde, considerarem a relação de causalidade estabelecida. Mesmo assim, ainda havia uma nesga de dúvida. O caminho completo da infecção, do sangue ao cérebro do feto –passando pela placenta– ainda não era tão claro, apesar de haver algumas peças soltas desse quebra-cabeça.

Já se sabia que esse arbovírus (vírus transmitido por um vetor artrópode, como os mosquitos aedes) tinha uma característica neurotrópica (preferência ou facilidade de atacar neurônios), mas os artigos científicos dessa leva vão além porque mostram esse efeito em um organismo vivo, complexo, não em uma cultura de células ou organoides (minicérebros), como mostrou o trabalho de Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.

No novo trabalho brasileiro, as fêmeas de camundongo foram infectadas durante a prenhez e seus filhotes nasceram com defeitos importantes, Veja alguns dos resultados abaixo.

a, SJL pups born with IUGR. Scale bar, 1 cm. b, Total body weight, crown–rump and skull measurements in pups born from infected animals (n = 6 pups, comprising 3 mice from 2 separate litters; error bars, s.e.m.; t-test, **P < 0.01). c, ZIKVBR RNA detected in SJL pup tissues (n = 6 pups, comprising 3 mice from 2 separate litters; error bars, s.e.m.; t-test)
Em (a), acima um filhote do grupo-controle (Mock) e abaixo um de mesma idade cuja mãe foi infectada por zika. Em (b), a diferença de peso e de medidas do crânio dos camundongos infectados. Em (c), carga viral no cérebro, rim, fígado e baço –mostrando a “preferência” do vírus pelo tecido nervoso. (Crédito: Fernanda  R. Cugola e colaboradores/’Nature’)

É possível ver a diferença no tamanho dos fetos (a) e também de medidas do crânio (b). O trabalho ainda traz indícios de que o vírus pode alterar a expressão gênica das células favorecendo mecanismos de “suicídio” celular ou de autofagia –ambos podem causar a microcefalia.

Vale destacar o esforço do grupo de cientistas da Universidade de Washington, que criou um modelo animal “humanizado”, com um sistema imunológico geneticamente programado para falhar e permitir a infecção. Após a inoculação, houve danos na placenta e no feto –podendo ser letal. O trabalho está na também excelente revista “Cell”.

Um grupo chinês injetou vírus da zika diretamente em fetos de camundongos e constatou a microcefalia após alguns dias. O trabalho está na “Cell Stem Cell”.

No estudo brasileiro, uma das linhagens testadas era “resistente” à infecção por zika (sua prole ficava intacta). É possível supor que alguma fragilidade do sistema imunológico contribua para a infecção tanto nos animais quanto em humanos –o que poderia explicar a alta incidência de microcefalia em algumas regiões, em grupos de pessoas com características étnicas ou comportamentais semelhantes.

Além de solidificar a relação causal entre zika e microcefalia, o desenvolvimento de modelos animais é importante para o teste de novas drogas e vacinas contra o vírus da zika. Já há estudos nessa direção.

A crise do zika, como mostramos na reportagem “Bastidores da zika”, foi uma oportunidade para pesquisadores brasileiros “mostrarem serviço”, atendendo uma comovente demanda do país. Existe o medo, porém, de que esse fôlego inicial acabe –seja por falta de verba ou pessoal.

Nesse sentido, o trabalho do grupo brasileiro, majoritariamente da USP, é um alento. Em meio a essa crise política e econômica, resta torcer para que se afaste o perigo de que o país perca o protagonismo científico na emergência sanitária internacional e possa mostrar que dispõe de grandes cientistas e gestores, capazes de lidar com um problema dessa dimensão.

 


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