Cadê a Cura? https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br Sobre doenças e suas complicações e o que falta para entendê-las e curá-las Thu, 19 Mar 2020 00:39:51 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Entenda a diferença entre surto, epidemia e pandemia https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/entenda-a-diferenca-entre-surto-epidemia-e-pandemia/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2020/01/23/entenda-a-diferenca-entre-surto-epidemia-e-pandemia/#respond Thu, 23 Jan 2020 17:53:29 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/cce995cefda4df1b4cee9aa2ee0deb0ea7414f1fd9b88484fe45876847009ddf_5e29995731933-320x215.jpg https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=1243 Quando muitos casos de uma doença contagiosa começam a ser reportados, logo surgem manchetes falando sobre determinado surto, epidemia e do risco de uma pandemia. Nem sempre, porém, fica claro o que é cada um desses níveis e exatamente em que momento passa-se de um estágio para o outro.

O primeiro conceito importante é o de endemia. Trata-se de uma certa quantidade de casos que historicamente já ocorrem em determinada região do país. Exemplos brasileiros: doença de Chagas e esquistossomose (barriga d’água).

Quando esse nível endêmico (que pode ser 0) é rompido pelo aumento de casos, pode-se considerar que há um surto ou uma epidemia

Geralmente fala-se em “surto” para designar que novos casos estão concentrados em determinada região, como um bairro de uma cidade ou uma região metropolitana. 

A palavra “epidemia” costuma ser reservada para quando a delimitação geográfica (uma vila ou um bairro, por exemplo) já não ajuda a definir tão bem onde os casos da doença estão acontecendo e/ou quando muitas pessoas são afetadas.

A distinção é algo cinzenta, mas uma infecção que pode ajudar a ilustrar o problema é o sarampo. Os surtos recentes de sarampo mataram 140 mil pessoas só em 2018, segundo a OMS. Calcula-se que as epidemias de sarampo na década de 60 chegaram a matar 2,5 milhões de pessoas.

Quando a epidemia afeta vários países ou continentes, trata-se de uma pandemia. Um caso ou outro de uma doença fora do local onde houve inicialmente o surto não implica necessariamente uma pandemia. Outros fatores, como a capacidade de disseminação do agente infeccioso (como no vírus da gripe) e presença de vetor (mosquito Aedes aegypti, no caso de arboviroses como dengue e zika) contribuem para a contenção ou espalhamento da moléstia.

Mas em que momento exatamente uma grande epidemia se transforma numa pandemia? Quantos países têm de ser afetados? Em que proporção? A gravidade da doença importa?

Há um consenso de que a gripe espanhola, que há cem anos matou pelo menos 50 milhões de pessoas, pode ser chamada de pandemia. Também se diz que o surto de gripe suína, em 2009, que matou 200 mil pessoas em todo o mundo, foi uma pandemia. 

Em um artigo publicado no periódico The Journal of Infectious Diseases, em 2009, os autores, entre eles Anthony Fauci, diretor do Niaid (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA) fazem uma reflexão do que seria necessário para atestar esse patamar extremo:

  • Grande distribuição geográfica: um dos consensos é que a doença tem que afetar uma grande porção territorial, como no caso da peste negra, da gripe (influenza) e de HIV/Aids.
  • Rastreabilidade do movimento da doença: é possível identificar para o caminho percorrido pela doença, como no caso da influenza, transmitidas por via respiratória, da cólera, pela água, ou da dengue, que se dá de acordo com a presença de vetores (mosquitos do gênero Aedes).
  • Alta taxa de infecção: quando a taxa de transmissão é fraca ou há baixa proporção de casos sintomáticos, raramente uma doença é tratada como pandemia, mesmo com grande disseminação. A febre do Nilo Ocidental saiu do Oriente Médio e foi parar na Rússia e no Ocidente em 1999, mas nunca carregou a alcunha de epidemia
  • Imunidade populacional baixa: É maior a chance de haver uma pandemia quando a imunidade da população for baixa para o patógeno
  • Novidade: o uso do termo pandemia está associado ao risco de novos patógenos (caso do HIV, nos anos 1980) ou novas variantes (caso do vírus influenza, da gripe, que apresenta sazonalmente novas configurações)
  • Infecciosidade: o termo “pandemia” é menos comumente ligado a doenças não infecciosas, como obesidade, ou comportamento de risco, como tabagismo. Quando isso ocorre, a ideia é destacar aquele problema como uma área que merece atenção, mas, segundo os autores do artigo, trata-se de um uso coloquial, não tão científico.
  • Tipo de contágio: a maioria dos casos de epidemias é de doenças transmitidas entre pessoas, como a gripe (influenza).
  • Gravidade: geralmente a palavra “pandemia” é associada a moléstias graves, capazes de matar, como peste negra, HIV/Aids e SARS (síndrome respiratória aguda severa). Mas doenças menos severas, como sarna (causada por um ácaro) ou conjuntivite hemorrágica aguda (provocada por vírus), também foram consideradas pandemias.

A principal forma de se prevenir contra os efeitos de uma pandemia é com sistemas vigilância para detectar rapidamente os casos, ter laboratórios equipados para identificar a causa da doença, dispor de uma equipe habilitada para conter o surto, evitando novos casos e sistemas de gerenciamento de crise, para coordenar a resposta.

A OMS (Organização Mundial da Saúde), por sua vez, emprega termos específicos para classificar certas situações. Uma emergência se dá quando uma autoridade decide que é hora de tomar medidas extraordinárias, como restrição de viagens e de comércio e estabelecimento de quarentena. Essa mesma autoridade também pode suspender esse estado de emergência. Geralmente uma emergência é bem-definida no tempo e no espaço e depende de um certo limiar para ser declarada. Esse limiar pode ser definido como uma taxa de mortalidade de 1 para cada 10.000 pessoas por dia ou mortalidade de 2 crianças abaixo de 5 anos a cada 10.000 pessoas por dia.

Crise é uma situação classificada como difícil, difícil de se estudar, classificar e combater. Uma crise pode não ser necessariamente evidente e necessita de um trabalho de análise para ser totalmente conhecida e e combatida.

Outras fontes consultadas: Ministério da Saúde, Fredi Alexander Diaz Quijano (Faculdade de Saúde Pública – USP), CDC


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Por Dayane Machado e Leda Gitahy, respectivamente doutoranda e professora livre-docente do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp

Cento e setenta países registraram casos de sarampo em 2019. O Brasil não só perdeu o certificado de erradicação da doença, como se tornou o sexto país em número de casos registrados. Devido a esses e outros acontecimentos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou a hesitação a vacinas uma das maiores ameaças à saúde de 2019.

A hesitação a vacinas é um conjunto diverso de atitudes relacionadas à imunização: há quem recuse apenas algumas vacinas; quem adie o calendário vacinal; quem obedeça ao calendário, mas não se sinta seguro, entre outras variações.

Essa falta de confiança coloca os mais frágeis em perigo e pode impactar as taxas de vacinação, aumentando o risco de epidemias de doenças preveníveis por vacina, como é o caso da poliomielite e do próprio sarampo.

As redes sociais também têm responsabilidade na disseminação dessa desconfiança, como indica uma pesquisa recente da Avaaz. Quase 90% dos vídeos do YouTube em português analisados pela organização apresentaram alguma desinformação sobre vacinas. Esse resultado se torna ainda mais preocupante se considerarmos que das pessoas entrevistadas pela pesquisa, 57% dos que deixaram de se vacinar alegaram algum boato sobre vacinas como o principal motivo para essa decisão.

O Facebook é uma das plataformas mais utilizadas para espalhar informações falsas sobre vacinas. Uma pesquisa americana revelou que dois únicos compradores são responsáveis pela maior parte dos anúncios antivacinação em inglês que circulam na rede social.

Larry Cook é um desses clientes. Ele administra o Stop Mandatory Vaccinations (site e comunidade no Facebook), que além de desinformação e teorias conspiratórias, promove uma loja da Amazon, onde livros antivacinação e produtos “alternativos” são comercializados.

Outro empresário beneficiado pelo discurso antivacinação é Joseph Mercola. Em seu site, ele ataca vacinas e anuncia produtos “alternativos” à imunização. Uma investigação realizada pelo Washington Post revelou ainda que o milionário é o principal apoiador do grupo antivacina mais antigo dos Estados Unidos, tendo doado mais de US$ 2 milhões (algo como R$ 8,35 milhões) à associação ao longo da última década.

Esse movimento também tem se fortalecido no Brasil por meio das redes sociais. Um dos maiores grupos do Facebook contrários à vacinação reproduz argumentos de conspiracionistas, compartilha conteúdo de sites negacionistas americanos e realiza até transmissão online de eventos problemáticos como o AutismOne.

Esse “congresso” se propõe a falar de autismo, mas tem sessão dedicada a criticar vacinas, oferece treinamento para “ativistas da saúde”, recebe gurus do movimento antivacina como palestrantes, além de promover terapias e produtos duvidosos.

Quando confrontadas publicamente com esses tipos de dados, as plataformas prometem combater a desinformação sobre vacinas, mas a constância nas denúncias de jornalistas a respeito desse tema indica o baixo nível de comprometimento de grande parte dessas empresas. Mark Zuckerberg, por exemplo, já disse que não incentiva o festival de desinformação dentro do Facebook, mas também não se opõe caso “alguém quiser postar conteúdo antivacinação ou quiser se juntar a um dos grupos que discutem esse tipo de ideia”.

Redes sociais são movidas a atenção e engajamento, de modo que conteúdos antivacinação também podem se tornar lucrativos para essas empresas. Enquanto isso, os grupos antivacina se organizam e se fortalecem, disseminando dúvidas e criando novas ondas de hesitação.


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Falta de proteína na dieta está associada à síndrome da zika em bebês https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2020/01/14/falta-de-proteina-na-dieta-esta-associada-a-sindrome-da-zika-em-bebes/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2020/01/14/falta-de-proteina-na-dieta-esta-associada-a-sindrome-da-zika-em-bebes/#respond Tue, 14 Jan 2020 10:06:09 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/zika1-320x215.png https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=1232 Cientistas do Brasil, Argentina, EUA e Inglaterra conseguiram adicionar mais uma peça ao quebra-cabeça da zika. Eles descobriram que a falta de proteína na dieta da mãe está associada a uma maior chance de o filho sofrer com os efeitos da infecção.

Os pesquisadores, coordenados por Patrícia Garcez, da UFRJ, relatam os novos achados na última edição da revista Science Advances.

Já se sabia que a maior parte dos casos da síndrome congênita da zika (ou SCZ, cujos efeitos vão além da microcefalia) surgiram no Nordeste, especialmente em regiões pobres. Os cientistas calcularam que existe uma correlação baixa, porém significante (ou seja, que não pode ser desprezada) entre as taxas de crianças nascidas com microcefalia e de pessoas desnutridas em 24 estados com áreas na região tropical.

Na primeira etapa da pesquisa, 83 mães de crianças com SCZ residentes no Ceará foram entrevistas para avaliar seus hábitos alimentares durante a gestação. Dessas, 37% tinham uma ingestão proteica abaixo do recomendado (61 gramas ao dia). A ingestão das mães da amostra em média era de 64 g/dia, abaixo da média regional, de cerca de 70 g/dia.

A proteína é um macronutriente está presente em quase todos os alimentos, mas em maior quantidade em carnes, ovos, iogurte, queijo, ervilha, feijão e soja, por exemplo.

Trata-se de uma das frações mais valiosas da dieta de uma pessoa, tanto no sentido monetário quanto metabólico. No caso de desnutrição proteica, é possível que a pessoa esteja até mesmo acima do peso, por causa do excesso dos outros macronutrientes (carboidratos e gorduras). Seu organismo, contudo, se ressente, com a imunidade e funções de reparo e regeneração prejudicadas.

Numa segunda etapa do estudo, foram utilizados camundongos para entender experimentalmente se a desnutrição materna poderia de alguma maneira favorecer a infecção pelo vírus da zika em fetos.

Havia quatro grupos: grupo controle (camundongos sem intervenção), grupo infectado com zika, grupo com dieta de baixa proteína e o grupo infectado e que recebeu dieta de baixa proteína.

Alguns animais do grupo infectado submetido a dieta hipoproteica apresentaram anormalidades da placenta, com uma estrutura degenerada que permitia uma mistura do sangue da mãe com células do feto.

Faz sentido pensar que essa degeneração pode funcionar como uma avenida para o vírus da zika infectar o feto. E os filhotes, de fato, apresentaram um cérebro menor, com menos proliferação celular, e cortex cerebral (área considerada mais nobre) reduzida.

Figura mostra diferença no tamanho do cérebro e na espessura do córtex em filhotes de camundongos provocada pela infecção pelo vírus da zika associada à dieta materna com pouca proteína (Reprodução/Science Advances)

“A infecção pelo vírus da zika é um processo patológico complexo no qual a magnitude das anomalias congênitas não está somente associada à carga viral em cada tecido. Fatores indiretos como o dano à placenta também pode ter papel importante”, escrevem os autores no artigo. Para eles, aprofundar o conhecimento da síndrome é crucial para encarar futuras epidemias.

“Só melhorar a dieta não vai ajudar a proteger contra as infecções pelo vírus da zika, mas ela pode determinar a severidade da síndrome congênita”, diz Zoltán Molnár, professor de fisiologia de Oxford, em comunicado à imprensa.

Além da desnutrição, outros fatores podem ajudar a explicar a síndrome congênita da zika: carga genética, infecção anterior pelo vírus da dengue e até mesmo contaminação por uma toxina.


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A internet está cheia de curas impossíveis, achismos e charlatães, diz neurologista https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2019/12/20/a-internet-esta-cheia-de-curas-impossiveis-achismos-e-charlataes-diz-neurologista/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2019/12/20/a-internet-esta-cheia-de-curas-impossiveis-achismos-e-charlataes-diz-neurologista/#respond Fri, 20 Dec 2019 11:00:54 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/32913725404_e6ec730c66_c-320x215.jpg https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=1225 O neurologista Saulo Nader, do canal do YouTube NeurologiaePsiquiatria TV, escreve para o blog Cadê a Cura? e fala sobre sua indignação com as pseudociências, que ganham espaço especialmente na internet e põem a saúde e a vida das pessoas em risco.

*

Por Saulo Nader, neurologista

Enquanto o Uber rasgava o trânsito da metrópole com a agilidade de uma tartaruga, me perdia contemplando as varandas gourmet. Tanta vida ocorrendo naqueles espacinhos iluminados que se apinham no horizonte da capital.

Um casal parecia discutir em uma; em outra, crianças corriam animadas; em uma lá no meio do prédio vermelho, uma cena que me captou: um homem de cadeira de rodas segurava o celular e navegava entorpecido em sua telinha. Seu olhar cansado exalava curiosidade. Será que buscava informação sobre saúde no mundo virtual?

Talvez ele procurasse no cyberespaço dicas para saber mais de sua vertigem (uma doença traiçoeira) ou simplesmente como lidar com o desafio de ser deficiente na cidade dos buracos. Escrevi um lembrete para gravar um vídeo sobre o assunto.

Naquela noite, eu comemorava o marco de mil pacientes atendidos em meu consultório, mil vidas que esbarraram na minha e que tive a oportunidade de, por meio da ciência médica, tentar ajudar.

Mil vidas, mil histórias, mil doenças… O número chacoalhava dentro do meu cérebro. Em meu canal no YouTube, contudo, tenho vídeos já com mais de um milhão de visualizações. Ou seja, somente por essa portinha mágica do smartphone, esbarrei em mais de um milhão de vidas.

Um milhão de pessoas é mais do que qualquer médico atenderá em toda sua carreira, por mais trabalhador que seja. De fato, a tecnologia quebra barreiras.

Um vídeo não substitui o médico, lógico que não. Mas leva informação às pessoas que anseiam por ajuda, dá um caminho para chegar à sonhada melhora. Tomara que um bom vídeo ajude aquele senhor ali parado, divagando no seu celular, ter ajuda para aliviar suas tonturas e a viver melhor com sua aliada de rodinhas.

O primeiro passo em busca da sonhada melhora é o conhecimento.

Ali, sentado no banco de um carro qualquer, em uma rua conturbada, pensei no poder que as mídias sociais podem dar a algumas pessoas e como muita gente usa esse poder para o mal, infelizmente.

Uma informação desencontrada, de má fé ou exploradora pode deixar um grande estrago nessas vidas, como as que vejo nas varandinhas.

Curas impossíveis, orientações equivocadas e causas inexistentes de doenças podem devastar uma existência. Crendices e achismos disfarçados com a roupagem professoral da ciência abundam por aí. Charlatões maquiados com a pompa e o jargão médico enganam livremente.

Tem de tudo: ervas milagrosas, vitaminas mágicas, Pedro de Jesus, o louco da vitamina D, o insano da glutamina, as pílulas da inteligência, a fosfoetalamina, o ódio contra vacinas e os chás de rosas. Obscurantismo e ocultismo vendendo falsa saúde, o mundo assombrado por demônios. Esse livro, “O Mundo Assombrado pelos Demônios”, escrito pelo incrível Carl Sagan, expõe o capeta que ganhou asas no mundo digital: a pseudociência.

Essas pessoas que usam da fé para enganar e em, boa parte das vezes, para enriquecer não se importam com o ser humano, apenas com o bolso. Em tom messiânico, prometem a cura por vias anticientíficas, místicas e irreais. Esse discurso entorpece os sentidos e engana a alma.

Ninguém está imune à pseudociência, mas, quanto mais boa informação houver, maior a esperança de que os dias adiante serão melhores. Existe muito conteúdo médico e de saúde com qualidade nessa galáxia confusa que é a internet, não tenha dúvida — conhecimento bom, baseado em evidência científica.

“Chegamos, amigo”, despertou-me dos meus pensamentos a voz rouca do motorista. Há um provérbio chinês que diz que mais vale acender uma vela do que lamentar a escuridão. Acendi a minha. E, nas varandas gourmet, vida acontecendo.

 


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Crianças e suas reflexões sobre a morte e a finitude

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Como regenerar o cérebro após um AVC? Resposta depende da manutenção de bolsas de pós-graduação, diz cientista https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2019/09/09/como-regenerar-o-cerebro-apos-um-avc-resposta-depende-da-manutencao-de-bolsas-de-pos-graduacao-diz-cientista/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2019/09/09/como-regenerar-o-cerebro-apos-um-avc-resposta-depende-da-manutencao-de-bolsas-de-pos-graduacao-diz-cientista/#respond Mon, 09 Sep 2019 12:03:19 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/47093887_3bd0c70fb7_o-320x215.jpg https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=1163 Com os recentes congelamentos de bolsas e de verbas para a pesquisa, cientistas veem ameaças ao futuro de estudos que podem ajudar a encontrar tratamentos para condições de grande interesse, como danos ao tecido cerebral. Marimélia Porcionatto, biomédica e professora associada de biologia molecular da Unifesp, escreve para o blog Cadê a Cura? sobre sua trajetória e sobre o atual panorama da pesquisa científica no país.

*

Por que o cérebro não se regenera? O que podemos fazer para contornar esse problema?

São questões importantes. Depois de uma pancada forte ou de um AVC, por exemplo, funções cerebrais importantes como raciocínio lógico e memória podem ser afetadas. Há ainda o envelhecimento, que muitas vezes traz consigo doenças neurodegenerativas.

O nosso grupo já fez importantes contribuições para a compreensão dos mecanismos celulares e moleculares que levam à ausência de regeneração cerebral.

Identificamos, por exemplo, uma molécula que induz a morte de neurônios imaturos que migram de uma zona neurogênica (onde neurônios se formam) para o local de uma lesão, o que pode ser entendido como uma tentativa de regeneração.

A morte desses neurônios antes que possam substituir aqueles que foram perdidos por lesão parece ser um dos processos que impedem a regeneração do cérebro. Já vimos também que a presença de cicatriz numa região do tecido nervoso também pode atrapalhar a entrada de novos neurônios naquela região.

Esses e outros trabalhos que realizamos nos levaram a sugerir algumas estratégias que poderão se tornar tratamentos para sequelas neurológicas no futuro. Entre elas está o emprego de uma combinação de células-tronco com microfibras compostas de ácido poliláctico, um composto biocompatível e biodegradável, que pode ser implantado no local da lesão e promover a sobrevivência de neurônios.

Mais recentemente, começamos a estudar maneiras de produzir partes do cérebro usando bioimpressoras 3D que usam materiais como biotintas e células-tronco. Pretendemos com isso mimetizar partes do cérebro tanto para realizar estudos do surgimento e progressão de doenças neurodegenerativas (alzheimer e parkinson, por exemplo) quanto para buscar uma maneira de repor o tecido nervoso perdido por um trauma, AVC ou neurodegeneração.

Vivo no mundo da pesquisa científica desde 1982, quando estava no segundo ano da faculdade. Fiz mestrado em biologia molecular com bolsa da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e doutorado com bolsa do CNPq (Conselho Federal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Foram dois estágios de pós-doutorado, o primeiro na Unifesp, com bolsa Fapesp, e segundo, em neurobiologia, no Dana Farber Cancer Institute, afiliado à Harvard Medical School, em Boston, EUA, com bolsa da Lefler Foundation for Neurodegenerative Disorders.

Durante minha formação, da graduação ao pós-doutorado, fui bolsista, e hoje sou professora associada da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Os cortes orçamentários impostos pelo governo já estão diminuindo a formação de recursos humanos, e muitos jovens talentosos deixarão de realizar pós-graduação. Esse período é fundamental para a formação do cientista, é quando se aprende a fazer ciência —a interação com orientadores, com colegas, com a comunidade científica está na base da formação de um cientista crítico, ético, inovador, desafiador e ávido por novas descobertas.

Cortar o fluxo de formação de novos cientistas é criar uma lacuna no desenvolvimento do país, que poderá levar décadas para ser revertida.

As perguntas que temos ainda demorarão anos para serem respondidas, e, claro, levantarão novas questões. A manutenção do fomento à ciência e das bolsas para pós-graduandos e pesquisadores é fundamental para que esses estudos não sejam interrompidos.

Este é um momento de defesa da ciência e da manutenção das condições para realização dos estudos que fazemos na Unifesp e de milhares de outros em andamento no país.

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Matemáticas desvendam comportamento da gripe e do ebola https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/08/23/matematicas-desvendam-comportamento-da-gripe-e-do-ebola/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/08/23/matematicas-desvendam-comportamento-da-gripe-e-do-ebola/#respond Thu, 23 Aug 2018 05:03:29 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/broad-street-320x213.jpg https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=1003 O médico John Snow (1813-1858, não confundir com Jon Snow, o herói bastardo de “Game of Thrones”) mostrou, em meados do século 19, que um surto de cólera em Londres tinha a ver com água infectada. A conclusão veio de uma associação geográfica entre os casos e uma bomba de abastecimento contaminada com esgoto em Londres.

Era o fim a teoria do miasma, espécie de ar maléfico que espalharia doenças, e início da epidemiologia moderna —uma das área das ciências médicas que mais se valem de cálculos. Embora mais de 150 anos tenham passado, o importante papel da matemática para a compreensão da dinâmica das doenças não mudou.

Em uma de suas linhas de pesquisa, Shweta Bansal, matemática da Universidade Georgetown, em Washington, investiga o comportamento da gripe, doença sazonal causada pelo vírus influenza e o papel das interações sociais para sua disseminação.

Ela conseguiu associar o pico de afecção de adultos ao recesso escolar que acontece em dezembro nos EUA. Outra possibilidade de explicação seriam as viagens para ver a família, mas o rigor matemático mostrou que elas não são decisivas.

O resultado, explica Bansal, pode ajudar as autoridades a elaborarem estratégi23as de prevenção, as quais se somariam às recomendações de vacinação e de higienização das mãos.

Para chegar a essas conclusões, a cientista analisou relatórios semanais, com número de diagnósticos separados por idade, produzidos por de mais de 400 mil médicos espalhados pelo país. As localidades foram identificadas por meio do CEP –algo não muito diferente, em essência, do que fez Snow.

Ajustes tiveram de ser feitos levando em conta, por exemplo, as pessoas que não procuram atendimento médico ou que não têm seguro saúde —responsável por prover parte das informações. Esses dados do mundo real, ou seja, fora de um contexto de estudo controlado, nem sempre são fáceis de se obter e têm de ser ajustados também, por exemplo, pela densidade populacional e de médicos.

Uma outra pesquisa de modelagem matemática aplicada à epidemiologia, comandada por Lora Billings, da Montclair State University, em Nova Jersey, conseguiu aproximar modelos clássicos de espalhamento de doenças à realidade adicionando apenas uma camada de complexidade: uma perturbação, ou ruído, no jargão da área.

O ruído não é uma entidade transcendental. Ele pode ser reflexo da chegada de um novo indivíduo contaminado ou da presença de reservatórios (animais contaminados com os agentes infecciosos).

Mesmo em condições de aparente tranquilidade epidemiológica, pequenos surtos de ebola começaram a pipocar em países como Libéria, Serra Leoa e Guiné antes do grande boom. Resultado: mais de 11 mil mortos entre 2014 e 2016. Após um curto período mais silencioso, neste ano de 2018 já houve um novo surto na República Democrática do Congo.

A partir desse exemplo é possível visualizar a dificuldade de lidar também com outras doenças infecciosas, como dengue, zika e chikungunya.

O mosquito Aedes aegypti já chegou a ser declarado erradicado no Brasil na década de 1950 —e aqui estamos, em um cenário rico em surtos e no qual se busca vacinas para tentar conter a expansão das arboviroses (apesar da intensificação recente de manifestações antivacina, vale notar).

As duas cientistas americanas estão no Brasil a convite do consulado dos EUA, em uma iniciativa para promover colaborações científicas entre os dois países. Entre as possibilidades, diz Billings, está o estudo de como a mudança climática pode interferir no espalhamento das doenças transmitidas pelo Aedes.


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Enfermeiras, psicólogas, nutricionistas e assistentes sociais têm mais desafios na carreira acadêmica https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/06/25/mulheres-e-desafios-na-academia/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/06/25/mulheres-e-desafios-na-academia/#respond Mon, 25 Jun 2018 16:00:34 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/40950954424_f5f6238137_k-320x213.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=961 Na área da saúde, algumas profissões são predominantemente femininas —nos EUA, as mulheres são 83% dos enfermeiros, 91% dos nutricionistas, 70% dos psicólogos e 82% dos assistentes sociais. No Brasil, o cenário é semelhante.

Segundo as conclusões de um simpósio realizado em Orlando no congresso anual da ADA (Associação Americana de Diabetes), essas profissionais têm um grau de dificuldade aumentado dentro da carreira acadêmica, quando pretendem ser professoras universitárias,  pesquisadoras e líderes científicas em suas áreas.

Um fator que contribui para isso é a prioridade baixa atribuída às disciplinas que elas ministram —a remuneração delas é pior e há o rótulo depreciativo de essas áreas serem “ciências soft”, em oposição às ciências duras (hard), como matemática, física, química ou engenharia.

Não se ganha status por ministrar, por exemplo, cursos com foco na prevenção de doenças, do cuidado com o paciente ou na mudança de hábitos de vida, apesar da importância de iniciativas do tipo. Como existe um estigma de feminização dessas áreas, a participação masculina também é reduzida.

Sem prestígio, é pouco provável que essas profissionais assumam posições de liderança e de gestão de serviços de saúde, por exemplo. No fim das contas, elas acabam muitas vezes tomando papéis secundários, vice-chefias, à sombra dos homens, geralmente médicos.

Felicia Hill-Briggs, presidente da seção de medicina e ciência da ADA e uma das palestrantes do simpósio, enumerou algumas características que fazem diferença na trajetória de mulheres de sucesso:

  • Ter a casca grossa, ou seja, não se deixar abater com facilidade;
  • Ter um mentor forte na instituição;
  • Permanecer flexível e criativa;
  • Criar ela mesma oportunidades de liderança e aproveitar as chances para fazer mudanças no sistema;
  • Alavancar a carreira de outras mulheres.

Homens geralmente dependem mais apenas do próprio esforço do que as as mulheres. Já elas têm praticamente de pavimentar a própria trilha. “Mesmo com um currículo parecido, muitos homens avançam na carreira e as mulheres não. Nós precisamos aprender mais sobre os caminhos institucionais e com quem falar”, diz a psicóloga, que é professora da Universidade Johns Hopkins.

Ela, que é negra, afirma que o preconceito racial pode agravar a situação. “É comum ouvir que ‘alguém como você’ não pode assumir determinada posição de liderança.”

A médica Elizabeth Seaquist, da Universidade de Minnesota, afirma que mesmo com a fração de mulheres em ritmo crescente entre o total de docentes da área médica, nas posições mais altas da carreira, em dados de um conjunto de instituições, elas ainda se encontram subrepresentadas, com a proporção estagnada na casa dos 20%.

Outro grande problema, diz, é a questão do assédio no ambiente acadêmico. “Não é por acaso que grandes revistas médica, Jama e New England Journal of Medicine, recentemente trataram do tema.”

“As mulheres não sabem se é seguro falar a respeito desses assuntos, se não vão sofrer represálias.” Nesse sentido, o impacto do movimento #metoo é bem-vindo e pode fomentar o funcionamento adequado dos comitês institucionais antiassédio, opina.

Em um documento recente lançado pela as academias nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina, as instituições afirmam que as ações de combate ao assédio tem falhado e sugeriram reformas profundas  e punições severas para lidar com a questão.

O jornalista viajou a Orlando a convite da Sanofi


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‘Antes do Viagra, pensava-se que a disfunção erétil era psicológica’, diz pesquisador https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/viagra-entrevista/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/viagra-entrevista/#respond Mon, 19 Mar 2018 12:14:40 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/VIAGRA-1-320x213.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=907 Sabia que a forma do comprimido Viagra, um diamante azul, foi escolhida porque seria difícil de falsificar? Além disso, era o formato que mais agradava os consumidores.

Há 20 anos, a droga chegava ao mundo para mudar quase tudo que se sabia  sobre disfunção erétil. Foi publicada neste domingo (18), na Folha, uma reportagem minha a respeito dessa trajetória.

Enquanto aprendia sobre essa história, tive a oportunidade de entrevistar Ian Osterloh, químico e médico britânico que liderou os estudos clínicos do Viagra em meados da década de 1990.

Segundo ele, as inúmeras cartas que a Pfizer recebeu durante o desenvolvimento da droga fizeram a companhia perceber de que se tratava realmente de uma condição séria e que merecia tratamento.

A entrevista, aqui organizada em tópicos, revela detalhes do início da jornada que levou ao lançamento da droga em 1998 e de como ela mudou o pensamento predominante à época, de que uma droga oral contra a impotência não seria viável.

*

Dr. Ian Osterloh BSc MSc MBBS MRCP Chief Medical Officer
O consultor britânico Ian Osterloh Crédito: Reprodução

INÍCIO DO TRABALHO

Eu me deparei com o projeto UK-92480, que depois veio a ser conhecido como citrato de sildenafila, no final dos anos 1980, quando colegas da Pfizer, em Sandwich, Inglaterra, me contaram sobre a ideia de bloquear as enzimas conhecidas como PDEs [fosfodiesterases].

Eles acreditavam que seria possível produzir uma droga capaz de bloquear a PDE-5 que pudesse ajudar a relaxar os vasos sanguíneos e tratar pessoas que tivessem pressão sanguínea elevada e/ou angina.

Naquela época, eu trabalhava no departamento de assuntos regulatórios, mas logo eu mudei de função para ajudar a implantar duas novas unidades de testes clínicos da Pfizer (uma perto de Sandwich e outra na Bélgica).

Um pouco depois, no início dos anos 1990, nós já estávamos estudando sildenafila como potencial tratamento para angina, mas os resultados não eram particularmente encorajadores. Em outro estudo clínico, que aconteceu no País de Gales, no entanto, alguns voluntários reportaram estar com melhores ereções. Então decidimos ver onde esse caminho nos levaria.

Eu comecei a trabalhar mais no UK-92480 em 1993 e, após alguns estudos-pilotos encorajadores, passei a me dedicar integralmente a esse projeto em 1994, planejando quais seriam os próximos estudos para descobrir quão bem a droga funcionaria em homens com disfunção erétil (DE).

 

DESENVOLVIMENTO INUSUAL

Há vários aspectos inusuais a respeito do desenvolvimento do Viagra como tratamento para DE. Obviamente já falamos sobre a mudança de direção do programa [de angina para disfunção erétil].

Quando nós falamos pela primeira vez sobre nossos planos de tratar DE para experts de fora da companhia, eles se mostraram céticos. Ninguém entendia como uma droga, especialmente uma que expande os vasos sanguíneos, poderia atuar nos vasos do pênis sem que houvesse grandes efeitos em outras partes do corpo. Muitos experts pensavam que nunca haveria um tratamento oral efetivo.

Outro aspecto inusual: os resultados dos testes eram cada vez melhores. Normalmente, no desenvolvimento de novas drogas, as expectativas são altas no começo, mas você tem de baixá-las –ou o tratamento não é tão efetivo como você esperava ou você não pode administrá-lo para certos pacientes ou os efeitos colaterais limitam a dose. E pode haver muitas outras razões para que uma promessa perca seu potencial.

 

COMPLEXIDADE X SIMPLICIDADE

A DE é uma condição complexa, com muitas possíveis causas, e há muitos agentes vasoconstritores e vasodilatadores agindo no organismo –ou seja, o próprio corpo faz um coquetel de substâncias para para regular a contração e o relaxamento dos vasos sanguíneos.

De início, eu não pensava que uma droga solitária, agindo em apenas um caminho químico, teria um efeito tão dramático na maioria dos homens. Foi ótimo ver que os resultados dos testes superaram nossas expectativas. E, claro, foi algo fantástico para os pacientes.

 

CONSCIENTIZAÇÃO

Nosso programa levou a uma grande conscientização sobre a DE e sobre a importância de conhecer suas causas. Antes dele, muitas pessoas consideravam que a doença tinha predominantemente uma origem psicológica. Agora virtualmente todos os experts concordam que a maior parte dos pacientes têm uma disfunção orgânica. Ou seja, homens que têm outras doenças que culminam na DE –como diabetes, aterosclerose ou hipertensão–  podem se beneficiar dos tratamentos dessas condições.

Outro aspecto que não aparece na maior parte dos programas de desenvolvimento de novas drogas é tamanho interesse público –muitos homens com DE nos escreviam ou nos ligavam explicando como a condição tinham efeitos devastadores em seus relacionamentos e quão desesperados eles estavam para receber um tratamento efetivo. Essas cartas nos convenceram que havia uma demanda séria.

Vale lembrar que após o lançamento do medicamento em 1998, os testes continuaram –foram 120 estudos clínicos, somando 14.000 anos de vida de pacientes acompanhadas, além de trabalhos que levaram a identificar que o medicamento poderia ajudar pacientes com hipertensão arterial pulmonar.

 

SATISFAÇÃO E MUDANÇA DA HISTÓRIA

No início era apenas um projeto do qual era ótimo fazer parte –pesquisávamos um novo mecanismo de ação e eu estava ciente de que havia uma enorme necessidade de um medicamento para DE. Fico muito feliz de a Pfizer ter apoiado o projeto, especialmente em seu início. Tenho certeza de que em muitas outras companhias o projeto seria descontinuado.

Antes de nosso programa, a maior parte dos homens se mostrava relutante em falar de DE e não tinha ideia de que era um problema tão comum e também não sabiam que poderia haver um tratamento. Foi recompensador trazer um novo medicamento para o mercado capaz de ajudar homens e parceiras(os). O viagra já foi prescrito para algo como 66 milhões de homens em todo o mundo.

 

 

MERCADO HOJE

A maior parte dos homens hoje têm acesso a vários tratamentos diferentes contra a DE. No entanto, todos devem tomar cuidado para adquirir medicamentos de uma fonte confiável e sempre após consultar um profissional de saúde.

Essas drogas são algumas das mais falsificadas em todo o mundo. Entre os riscos estão uma elevada quantidade de princípio ativo e a presença de substâncias estranhas ou tóxicas.

 

ATUAÇÃO

Saí da Pfizer em 2007, mas continuei a trabalhar com a indústria farmacêutica como consultor, em inúmeros projetos de diversas companhias. Por exemplo, pude ajudar uma companhia a aprovar na Europa um medicamento que encolhe miomas uterinos, reduzindo o sangramento excessivo.

 

BRASIL

Nunca estive no Brasil, mas sempre fui um grande fã do futebol brasileiro desde que comecei a acompanhar o esporte; tenho uma bola autografada pelo Pelé.


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Já pensou em ser voluntário em uma pesquisa científica? https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/02/28/voluntario-pesquisa/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2018/02/28/voluntario-pesquisa/#respond Wed, 28 Feb 2018 11:07:08 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2018/02/6993510602_63119fb51e_k-320x213.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=901 Fazer parte de um estudo científico como voluntário (alguns diriam “cobaia”) é uma das experiências mais curiosas que um indivíduo pode ter.

Imagine só a emoção de estar no princípio de uma descoberta. Será que o exercício físico ajuda a reduzir o ronco? Quais seriam os efeitos da poluição atmosférica na qualidade dos espermatozoides? Há questões que não podem ser respondidas de outra forma senão pesquisando.

Desde pequeno eu queria ser cientista, e isso me guiou até a escolha do curso universitário. Aos 18, quando comecei a estudar biomedicina na Unifesp, me deparei com um universo repleto de todo tipo de pesquisa –com camundongos, ratos, coelhos, cultura de células, bactérias, vírus… e com humanos.

A primeira pesquisa que participei como voluntário era para os pesquisadores entenderem melhor como o corpo humano funciona enquanto dorme e como o sono é atrapalhado por alguns problemas de saúde. (Ainda estamos longe de saber completamente como ele funciona, seja no sono ou na vigília.)

Nesse caso, eu era um voluntário saudável –sem insônia ou apneia grave. Muitos outros estudos precisam de participantes sãos para entender, por exemplo, como funciona a memória em uma situação de estresse (sim, participei), ou qual é o risco de uma pessoa se contaminar com HPV (vírus do papiloma humano) morando em São Paulo (sim, de novo).

Conhecer os pesquisadores, tentar entender o que estão fazendo e poder doar um pouco de tempo, de sangue ou mesmo uma noite de sono para que eles promovam o avanço da ciência era para mim mais do que só camaradagem, era uma chance de viver integralmente a ciência e de aprender como ela é feita.

TRATANDO DOENÇAS

Mergulhar numa dessas pesquisas pode ser a chance de abandonar a inércia e tentar fazer algo para sanar aquele problema que é arrastado há anos. Dor nas costas, incontinência urinária, tabagismo… novas e velhas formas de se tratar são testadas a todo momento.

A vantagem de receber um tratamento dentro de um protocolo de pesquisa é que o compromisso da equipe é um empurrãozinho para que o cuidado com a saúde seja mantido, com dados coletados regularmente e telefonemas para saber se tudo está OK.

Em estudos epidemiológicos pode haver o acompanhamento de pacientes ao longo de anos para entender a história natural de uma doença. O ponto positivo é que, a qualquer sinal de inconformidade, o paciente é encaminhado para tratamento e tem sua saúde monitorada pelos pesquisadores.

E no caso do teste de novas drogas? Será que há risco ao participar de um protocolo de pesquisa? Sim, há, mas geralmente não são riscos altos. Dependendo do estágio em que a pesquisa clínica está, ainda não se sabe se há grande chance de efeitos colaterais –nesse caso geralmente o paciente é internado e monitorado de perto.

Além disso, projetos de pesquisa que envolvem humanos têm de ser aprovados por dois comitês de ética em pesquisa, um local e um nacional, para poderem acontecer. Se o possível benefício é pequeno em comparação ao estresse causado, o projeto, via de regra, não vai para frente.

Todas as informações relevantes para a tomada de decisão de participar ou não têm de estar no termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), que é apresentado aos voluntários e tem de ser assinado por eles e por um representante da equipe.

DINHEIRO

No Brasil não pode haver remuneração em troca da participação em estudos. Essa é uma estratégia para evitar, entre outros problemas, o surgimento de “voluntários profissionais”. Por aqui só é possível ressarcir despesas com transporte e alimentação; em outros países, como os EUA, é possível ganhar dinheiro dessa forma.

Uma das exigências a serem cumpridas por investigadores e patrocinadores de pesquisas clínicas é ofertar, além dos novos tratamentos, as melhores terapias disponíveis até então para a condição que está sendo investigada. O que define qual tratamento cada paciente vai receber primeiro, porém, geralmente é um sorteio –uma maneira de garantir a qualidade das informações a serem coletadas.

Os pacientes desses estudos geralmente têm acesso a remédios muitas vezes ainda indisponíveis para a população em geral –é o caso dos testes de novos imunoterápicos contra o câncer, cujas vagas rapidamente se esgotam em centros de pesquisa mundo afora (há situações, no entanto, em que há mais vagas do que pacientes).

Mas nem tudo é perfeito, claro. Existe toda sorte de pesquisadores –os apaixonados e responsáveis, os desleixados, os frustrados, os preguiçosos, os malandros…– e há estreita correlação entre a confiabilidade da pesquisa e a boa conduta dos pesquisadores. É possível, sim, que haja muitas meias-verdades sendo publicadas em decorrência de estudos mal conduzidos.

Por outro lado, especialmente em estudos maiores e que envolvem dezenas de pesquisadores (e, às vezes, milhares de voluntários), há mecanismos estatísticos e de controle de qualidade que atenuam ou solucionam problemas do tipo –é como se uma pequena picaretagem tivesse seu efeito maléfico diluído num caldeirão de dados confiáveis. 

No caso de grandes indústrias farmacêuticas, boa parte dos lucros são reinvestidos em pesquisas, a fim de descobrirem novas drogas. São empreendimentos que chegam à casa dos bilhões de dólares –faz sentido fiscalizar de perto e garantir que o dinheiro seja bem gasto.

COMO PARTICIPAR?

Conversei com pessoas entendidas e pesquisei, mas não parece não haver, ao menos até agora, um site em português que contenha informações de estudos clínicos em andamento no Brasil. Provavelmente a maior parte deles está no site americano clinicaltrials.gov. Quando busquei, havia pouco mais de 1.000 estudos acontecendo em terras brasileiras.

Aviso: talvez o leitor se frustre com o jargão médico em inglês do portal. O ideal é pedir para seu médico traduzir o conteúdo e buscar meios de viabilizar o recrutamento para o estudo desejado, se for o caso.

Vale também prestar atenção aos canais de divulgação oficiais de Universidades e de institutos que praticam pesquisa clínica. Tem uma lista deles aqui.


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Biodiversidade inspira consórcio brasileiro na busca por novos remédios

 

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Biodiversidade inspira consórcio brasileiro na busca por novos remédios https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/biodiversidade-inspiracao/ https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/biodiversidade-inspiracao/#respond Mon, 11 Dec 2017 06:03:23 +0000 https://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/files/2017/12/b408900d634b246293097844c28f69e3350e2df78e4dc56510d4ad7fd5dceedd_5a2130292db45-180x120.jpg http://cadeacura.blogfolha.uol.com.br/?p=865 Uma iniciativa 100% nacional irá buscar novas substâncias originárias da biodiversidade das plantas brasileiras com o objetivo de levar novos remédios às prateleiras das farmácias. Apesar do estágio inicial em que as pesquisas se encontram, as expectativas são altas.

O laboratório farmacêutico Aché, o Laboratório Nacional de Biociências (integrante do CNPEM, Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, que por sua vez é ligado ao MCTIC) e a empresa Phytobios, especializada na prospecção e na obtenção de extratos da natureza, se uniram na empreitada.

Um dos dois projetos prospectará um medicamento oncológico. O outro deve ter aplicações em dermatologia ou em cosméticos, ao atuar como um agente
antienvelhecimento. O anúncio das iniciativas será feito nesta segunda (11).

O investimento na primeira fase de desenvolvimento é de R$ 10 milhões —metade do valor será pago pelo Aché. Do restante, uma parte fica a cargo da dobradinha CNPEM-Phytobios e outra da Embrapii, a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial.

O gerente de desenvolvimento de drogas do LNBio, Eduardo Pagani, explica que o montante custeará os primeiros cinco anos de desenvolvimento, que essencialmente envolvem a formação da biblioteca e os testes químicos iniciais. Caso os produtos sejam lançados, os dividendos serão repartidos entre as instituições.

SÍNTESE

Segundo o diretor de inovação do Aché, Stephani Saverio, recorrer à biodiversidade em busca de “inspiração” não é um luxo, mas uma necessidade em uma era na qual sintetizar novos compostos químicos é uma tarefa quase impossível.

“Não há muito mais opções na área da química de síntese para fazer uma molécula do zero; é uma área que já é explorada desde as décadas de 1930 e 1940.”

Por causa dessa saturação, a biodiversidade torna-se fonte de ideias. Cada espécie de planta produz uma miríade de substâncias, algumas com uma estrutura totalmente diferente daquilo que era imaginado no universo da síntese química.

Para identificar as candidatas a medicamentos, as moléculas de um extrato vegetal são postas à prova: se funcionarem como “chaves” em “fechaduras” moleculares, elas passam para a fase seguinte do desenvolvimento. É nesse ponto que se encontram atualmente as pesquisas do consórcio.

O próximo passo é tentar melhorar a molécula para conferir a ela outras propriedades, como boa taxa de absorção (no caso de via oral) e mais afinidade com sua “fechadura” —também conhecida como alvo terapêutico.

Na sequência vêm os testes em animais e, depois, em humanos. Os investimentos aumentam progressivamente, girando na casa das dezenas de milhões de reais.

Caso seja necessário obter a matéria prima na mata para a produção, o modelo adotado é o de extrativismo sustentável, explica Cristina Ropke, CEO da Phytobios.

Muitas das substâncias, que formam uma grande biblioteca, vêm de plantas que ainda nem têm nome científico —elas são identificadas e localizadas a partir de coordenadas geográficas.


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